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De guardião a vilão: a história do amianto no imaginário popular
Em um longo artigo publicado na edição
de julho de 1997 da revista Scientific
American, os professores James E. Alleman e Brooke T. Mossman sintetizaram
da seguinte forma a contradição que cerca a figura do amianto: “De fato, um
pungente paradoxo que envolve a história do amianto é sua imagem original como
guardião da segurança dos seres humanos”.
Os pesquisadores, dois dos maiores
especialistas do mundo no assunto, qualificaram ainda o drama da crise de
imagem do amianto como “ironia crucial”, ao reconhecerem que, não fosse um
material de qualidades tão impressionantes, dificilmente a fibra passaria por
um calvário de tamanha proporção junto à opinião pública e o imaginário
popular.
Não é para menos. O amianto, durante
muito tempo, esteve presente em cremes dentais, toalhas de mesa, cortinas e
trajes isolantes. Era usado também como filtro em sistemas de ventilação em
hospitais e em máscaras militares de gás. Freios, sapatos, revestimentos de
embreagem e equipamentos de segurança em carros de corrida e ônibus escolares
foram outros itens, entre tantos outros, que tiveram amianto em sua composição,
reforçando seu caráter como elemento de proteção ao trabalho do homem, na
indústria e no dia a dia.
O
professor Alleman, cuja área de expertise também abrange a história do uso
dessa fibra de origem mineral pela espécie humana, lembra que as primeiras
referências ao amianto podem ser rastreadas até alguns filósofos da
Antiguidade. O primeiro entre eles é Teofastro, discípulo de Aristóteles. A ele
os estudiosos reputam a provável primeira citação ao amianto, no trabalho “Sobre as pedras”, escrito há cerca de
300 a.C.. O pensador fez referência a uma substância desconhecida que lembrava
a consistência da madeira podre, podendo ser embebida em óleo e queimada sem
sofrer qualquer dano aparente.
Ainda
na Antiguidade, as referências ao mineral e sua fibra incluem o geógrafo grego
Strabo, também conhecido como Estrabão, de quem o nome originou o termo
estrabismo, porque esta era a palavra utilizada pelos romanos para se referirem
àqueles com deformações nos olhos. Strabo identificou a primeira pedreira de
amianto, localizada na ilha de Euboea, na Grécia, de onde as fibras retiradas
entre os sulcos das rochas eram trabalhadas para serem transformadas em tecidos
resistentes ao fogo.
A
primeira aparição do vocábulo “amianto” ocorreria ainda no século primeiro, na
obra De Materia Medica, do autor
greco-romano Dioscórides, fundador de um dos mais antigos ramos da
farmacologia. Dioscórides usou o termo amiantos, significando, justa e
ironicamente, “sem mácula”. Os especialistas discorrem, porém, que a acepção
moderna da palavra pode ser rastreada até a obra História Natural, do naturalista romano Caio Plínio II, conhecido
como Plínio, o Velho, que se referia
a asbestinon, com o sentido de
“inextinguível”. Caio Plínio registrou que o amianto era usado por
seus contemporâneos para a manufatura de uma série de produtos têxteis, de
toalhas laváveis e guardanapos a também mortalhas usadas em funerais de
monarcas e nobres. Neste caso, os corpos eram desintegrados pelo calor enquanto
as mortalhas permaneciam íntegras sem sofrer danos.
Cabelo de salamandra
A
trajetória da imagem do amianto no mundo das ideias migrou, durante um período
superior a 2000 anos, da figura de mineral mágico para a de substância venenosa
e, deste modo, para um agente de contaminação e doença. O status extremamente
negativo que a fibra ganhou na modernidade é, de certo modo, o contraponto à
sua mística como pedra de propriedades espetaculares e agente de proteção do
homem. “Em algum ponto da linha, o fato de que o amianto foi um dia uma pedra
acabou esquecido”, destacaram ainda Alleman e Mossman em seu artigo.
A
fantasia sobre a origem do amianto e suas qualidades incríveis se popularizam
entre os alquimistas medievais. A lenda era que as fibras de amianto cresciam
como cabelos em salamandras, tornando assim o réptil mítico resistente ao fogo.
Alguns alquimistas chamavam até mesmo a pedra em que a fibra é comum de
“salamandra”. A iconografia de obras alquímicas
é rica em gravuras de uma salamandra indestrutível, cercada por chamas. Durante
parte da Idade Média, a origem do amianto era, assim, não atribuída à rocha,
mas também a plumas encontradas em lagartos e a penas de aves.
O
amianto voltaria ao campo da razão por volta do século 16. O navegador Marco
Polo, ao visitar uma mina de extração de amianto na China, em funcionamento
desde o final do século 13, foi um dos primeiros a reafirmar que sua origem
era, sim, mineral, em contraponto à mitologia. Ainda no século 16, o fundador
da mineralogia, George Agricola, ajudou a consolidar o conhecimento científico
sobre o amianto em sua obra Manual de
Mineralogia.
No
decorrer dos séculos 17 e 18, diversos estudos científicos surgiram sobre o
amianto ao passo que a abrangência de sua aplicação comercial também aumentava.
Benjamin Franklin, um dos fundadores dos EUA, ainda como jovem inventor,
carregava uma bolsa costurada com fibras amianto, com o fim de evitar que
algumas das substâncias ou objetos que trazia com ele viessem a abrir um buraco
na bolsa.
Na
década de 1820, o cientista italiano Giovanni Aldini foi o primeiro a explorar
o produto com amplo sucesso comercial. Aldini criou uma linha de trajes feitos
com fibra de amianto para serem usados por bombeiros. Na mesma época, surgiram
também as cortinas projetadas para a área do proscênio em teatros, o espaço que
separa o palco da plateia. Cortinas feitas com amianto foram responsáveis por
reduzir os acidentes em ambientes fechados e lotados durante apresentações
teatrais, impedindo que o fogo se alastrasse e salvando vidas.
Antes
que o amianto chegasse, de vez, ao ramo da construção civil, foram os navios a
vapor que potencializaram, como nunca antes, seu usoem larga escala na
indústria. Misturada com borracha, a fibra se mostrou perfeita para a
utilização em componentes e na estrutura interna das embarcações. Em meados da
década de 1860, uma época em que os incêndios em edifícios de apartamento eram
tragicamente frequentes nos grandes centros urbanos dos EUA, o construtor Henry
Ward Johns, de Nova York, desenvolveu o primeiro material anti-inflamável para
revestimento de telhados. Este foi o ponto de partida para que o amianto se
tornasse um produto fundamental na indústria da construção civil.
Reserva estratégica
No fim
dos anos 1930, a imagem pública do amianto vivia o auge de sua glória. Em 1939,
por exemplo, durante a Feira Mundial de Nova York, o amianto foi saudado pelos
exibidores e público como “um mineral a serviço da humanidade”. Um gigante
feito todo de amianto, o “asbestos-man”,
dava boas-vindas aos visitantes, ao passo que os frequentadores eram
didaticamente informados sobre as propriedades incríveis da fibra. Às vésperas
da II Guerra Mundial, a demanda por amianto já ameaçava ultrapassar a produção
global, levando países a se preocupar em formar reservas do mineral.
Em
1947, a popularidade do mineral chegava até mesmo aos quadrinhos, o super-herói
Tocha Humana passou a enfrentar uma nova vilã, a Madame Amianto (Lady Asbestos, no original). Vestindo um
traje de amianto, a vilã era, de tal forma, imune às chamas do herói, um
androide que tinha a capacidade de incendiar-se. Apesar de constituir um
elemento do vilão, a imagem do amianto nos quadrinhos estava ali pelo valor de
“resistência contra o fogo” e não ainda pelo seu caráter negativo. Embora já
houvesse a preocupação com casos de adoecimento decorrentes do uso em massa e
sem controle do amianto anfibólio, a imagem do mineral ainda não havia sido
totalmente afetada.
Já nas
primeiras décadas do século começaram a surgir conclusões que apontavam como
causa das doenças o uso sem qualquer precaução do amianto de tipo anfibólio.
Nos anos 1930, o Reino Unido já possuía legislação voltada para o uso do
amianto em fábricas têxteis, mas inexistiam padrões de segurança realmente
efetivos para o uso industrial do amianto anfibólio.
A
preocupação com a saúde em larga escala começou a tomar corpo na década de
1960, quando governos de diversos países industrializados começaram a formular
leis de controle para o uso do amianto anfibólio. Nesta época, o anfibólio já
era apontado como causa dos sucessivos casos de adoecimento e morte.
Entretanto, o crescente número de vítimas e a pressão de entidades e sindicatos
levaram os países a adotar legislações de controle também para todas as classes
de amianto.
A despeito
do banimento em alguns países, o mineral ainda ocupa um papel central nas
atividades econômicas das sociedades. Nos Estados Unidos, o uso do amianto é
central para a indústria aeroespacial, sendo amplamente usado no revestimento
de foguetes. No âmbito doméstico, pelo menos 75 % do cloro incluído na fórmula
de marcas de água sanitária e desinfetantes é produzido, naquele país, a partir
de processos químicos que dependem do uso do amianto.
Os professores
Alleman e Mossman sintetizam deste modo a questão da mudança da percepção
pública em relação ao mineral ao passo que sua importância estratégica
permanece: “Gerações passadas podem ter considerado o amianto como um recurso
inestimável, mas a atual preocupação com os riscos que acarreta para a saúde
humana obscurecem essa memória. Sugerir que o amianto possa ter qualidades
redentoras soa como irresponsável. Qualificar o mineral como um commodity vital
do ponto de vista da estratégia global soa ridículo. E ainda assim este é
exatamente o caso. O tipo de amianto conhecido como crisotila (de fibra mais
flexível e menos perigoso que os anfibólios), por exemplo, permanece como um
mineral essencial para uma série de tecnologias cruciais, com o governo dos Estados
Unidos abrigando estoques do mineral até hoje”, escreveram.
Deste
modo, escapa à opinião pública o fato de que os esforços para o banimento do
amianto não trarão qualquer benefício prático em termos de segurança e saúde
para a população, já que os casos de adoecimento e morte foram praticamente erradicados
depois que o uso controlado do crisotila passou a ser regulado em todo o mundo.
Nas palavras dos autores do artigo publicado há duas décadas, trata-se do círculo
completo da “ironia original” envolvendo o amianto. Desta vez, apontam, algo que parecia tão
maligno, no fim, não é, de fato, assim essencialmente maligno.
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